sábado, 24 de março de 2007

Segue-me


Porque é que te perdeste no caminho, se eu sigo em frente?
Ainda te espero na encruzilhada. Na esperança de ver-te surgir, aguardo o amanhecer. Choro a cantar as minhas mágoas, a ouvir soluçar a água nos beirais. No ar ainda pesa a humidade.
Porque é que o tempo não pára? Sofreria menos por não te ter, mas prolongaria a tua lembrança.
Os teus olhos perseguem outro caminho, que não o meu abismo.
A tua língua desenvolta em mil idiomas, que não percebo porque não aprendi.
O teu corpo ondula pelos campos, que não me pertencem.
A tua mente dispersa-se além do meu sentimento.
Vem comigo.
Sei que ainda te posso amar!

quinta-feira, 22 de março de 2007

Eu sou assim


Às vezes você me pergunta por que é que eu sou tão calado
Não falo de amor quase nada, nem vivo sorrindo ao seu lado
Você pensa em mim toda hora, me come me cospe me deixa
Talvez você não entenda mas hoje eu vou lhe mostrar
Eu sou a luz das estrelas, eu sou a cor do luar
Eu sou as coisas da vida, eu sou o medo de amar
Eu sou o medo do fraco, a força da imaginação
O blefe do jogador, eu sou, eu fui, eu vou
Eu sou o seu sacrifício, a placa de contra-mão
O sangue no olhar do vampiro e as juras de maldição
Eu sou a vela que acende, eu sou a luz que se apaga
Eu sou a beira do abismo, eu sou o tudo e o nada
Por que você me pergunta? Perguntas não vão lhe mostrar
Que eu sou feito da terra do fogo da água e do ar
Você me tem todo o dia, mas não sabe se é bom ou ruim
Mas saiba que eu estou em você mas você não está em mim
Das telhas eu sou o telhado, a pesca do pescador
A letra \"A\" tem meu nome, dos sonhos eu sou o amor
Eu sou a dona de casa nos \"peg-pags\"do mundo
Eu sou a mão do carrasco, sou raso, largo e profundo
Eu sou a mosca da sopa, o dente do tubarão
Eu sou os olhos do cego e a cegueira da visão
Eu sou o amargo da língua, a mãe, o pai e o avô
O filho que ainda não veio, o início, o fim e omeio
O início, o fim e o meio

quarta-feira, 21 de março de 2007

A Primavera Revelada


Não a primavera interior, interdita, a da casa, nascendo dentro, entrando para as ruas, memórias breves, marcas eternas subitamente extintas, dissolvendo a parte fechada dos parques, absorvendo os narcisos, em infernos exíguos, agora antigos, não a primavera definida pelos aromas fixos, de interpretação impossível, a não ser na mutação dos corpos, no conhecimento das ínfimas estrias, no futuro então explícito, nas ruas de colunas ondulando ao ar frio, não essa primavera tardia, no futuro retida, mas a revelação revista, a sucessão das ondas, como quando a primeira primavera sobre o corpo corria.

domingo, 18 de março de 2007

Vou Procurar


Procuro-te por entre ruas, esquinas,
Prédios e fachadas, e não te encontro!
No meio da multidão, vejo gentes,
Raças, etnias, religiões, tudo menos tu.

Sinto-me desorientada no espaço, no tempo,
No pensamento e nas palavras.
Aquilo que me completava desapareceu!
Já não sou nada, já não sou ninguém.

O céu está nublado,
Tanto, que os arranha-céus desapareceram.
E se estás lá bem no alto?
Sem eu te poder ver, ajudar, e completar?

Junta-te a mim, não fujas.
Procura-me no teu profundo sentimento de perda,
E de certeza que me achas,
Alma minha!

terça-feira, 13 de março de 2007

Mudam-se os tempos


Observo-o a mudar. Não é o mesmo homem que entrou nesta casa, seis, sete meses atrás. Algo, da mesma natureza poderosa das metamorfoses, vem operando no seu íntimo. É talvez, como nas crisálidas, o secreto alvoroço das enzimas dissolvendo órgãos. Podem argumentar que todos estamos em constante mutação. Sim, também eu não sou o mesmo de ontem. A única coisa que em mim não muda é o meu passado: a memória do meu passado humano. O passado costuma ser estável, está sempre lá, belo ou terível, e lá ficará para sempre.

quinta-feira, 8 de março de 2007

segunda-feira, 5 de março de 2007

Esta voz que me atravessa


Esta voz que me atravessa
Sem que eu queira, sem que eu peça
Não mora dentro de mim
Vive na sombra a meu lado
Dando ao meu fado outro fado
Que me faz cantar assim

Trago cravado no peito
Um resto de amor desfeito
Que quando eu canto me dói
Que me deixa a voz em ferida
Pelo pranto de outra vida
Que eu nem sei que vida foi

E quando canto há quem diga
Que esta voz de rapariga
É mais antiga do que eu
Estava aqui à minha espera
Não morreu com a Severa
Quando a Severa morreu!

sexta-feira, 2 de março de 2007

E então fiquei...


Parada à esquina do tempo
Esperei por ti
E não voltaste!
Sentada a um canto da vida
Esperei por ti
E não chegaste!

quinta-feira, 1 de março de 2007

Sonho


Vejo que a chuva ainda cai lá fora, na noite crua. Surpreendeu-me neste serão ainda frio, ao arrepiar-me os diminutos cabelos da nuca. O sentimento da tua ausência confunde-se com o vento, como quem te viu ir para algum sítio sem saber bem para onde e te continua a procurar sem sabe porquê. O vento é frio. Aconchego-me na pele coçada, desbotada da poltrona e puxo a manta raiada.
Poderias estar comigo, mas preferes as luzes ténue dos candeeiros da rua, que cintilam. Não os consigo ver da janela, mas alcanço uma aureula que aclara o negro do céu, sombreiam a cal das paredes. Sei que te perdes lá fora, algures continuas a sorrir, como sempre. Moves-te bem, em sintonia com o espaço e caminhas firme, com a segurança de quem conquista o mundo.
Saberia dizer que a solidão de uma sala cheia ainda me incomoda, mas aprendi que prefiro ter-te no meu pensamento, embora já embalado num sonho.
Perco-me num vazio e frio labirinto. A manga da camisa foi agarrada pelos ramos secos dos arbustos que me cobrem a cabeça e a vista de ti. Despedaça-se em grossos farrapos. Corro sem direcção porque os meus passos são curtos demais para chegar a ti. Não te alcanço! Sinto o teu odor no ar e persigo os teus passos. Ouço os pequenos duendes da floresta sussurrarem à minha passagem, repentina e ofegante.
_ Persegue-os o amor!_ dizem.
Apercebo-me que os seus olhos se entristecem quando me olham. Eles sabem que corro em vão.