quarta-feira, 21 de maio de 2008
quarta-feira, 7 de maio de 2008
La Loca

Uma brisa fresca toca-me a pele, enregela-me a ponta dos dedos e humedece a minha cara. É disto que melhor me recordo! A noite desaparece. À medida que caminhamos, os nossos risos confundem-se com os primeiros sons dos animais e olhamo-nos nos olhos, sem nos apercebermos que tudo ficaria ali, naquele instante mágico.
Agora, à distância de uns anos, consigo recordar muito pouco. A dose diária de lítio ofusca parte da minha memória, mas mantém-me mais lúcido instantaneamente. Deixei de ouvir aquelas vozes que me desesperavam, que me aceleravam o coração. As minhas inquietações agora são outras.
A Gabriela já não está entre nós. O Inverno passado, enquando se ultimavam os preparativos da festa de Natal, resolveu abandonar-nos. Agora estamos mais sós sem a sua loucura. Ela sim era louca!
Passávamos na Praça do Giraldo, entre o fumo das castanhas assadas que estalavam, e ali estava ela dentro da loja. Vestia uma camisa de noite de seda branca rematada a renda, já rota pelo passar dos anos ou pelo descuido, que transparecia o seu ventre. As fitas que a ajustavam no peito estavam soltas, pendentes como os seios à vista de todos. Ela sorria, apontava o dedo a quem passava e gesticulava, articulando palavras inaudíveis, abafadas pela distância de um vidro. Quando nos avistou começou a beijar o vidro, esborratando o seu batôn vermelho, manchando a parede transparente que a separava e sempre a separou da realidade. Foi como se um jorro de sangue abandonasse o seu corpo e o seu fluído de vida se espalhasse propositadamente ao acaso e que estivesse ali aos olhos de todos os que passavam. Sim, porque ninguém ficava indiferente e todos olhavam, para de seguida baixarem os olhos para não a provocar, diziam uns. Mas a maior parte deles tinha medo de se olhar na imagem de um espelho que poderia ser o seu, a ténue linha entre a razão e a loucura. Agora percebo que vibrava com este tipo de interacção, fazia-se notar, evidenciava o seu desespero de uma forma quase cruel. Impunha-se às pessoas que sempre a ignoraram. Mas era louca, mais uma entre nós.
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