Acordo! A manhã é diferente.O chilrear dos últimos pássaros que habitam as copas das árvores, anunciam a luminosidade sombria do dia. As nuvens flutuam agora, passados os dias de fastio, quentes e longos, ainda frescos na memória e na pele. Olho pela janela. A rua está deserta! Apenas o Sol, melancólico, faz brilhar as gotas de orvalho esquecidas pela madrugada.Saio de casa debaixo de um céu cinzento e sóbrio que se adensa sobre a minha insignificante pessoa. De repente sinto-me rodeado de uma Natureza intacta, provocada apenas por um sopro de ar gélido, que me arrepia. Encontro o António. Vejo-me nele.Os plátanos, outrora verdes, vestem-se agora de um colorido amarelo ocre que domina o espaço à minha frente. Erguidos com supremacia, tocam as nuvens, perfuram-nas como uma rocha aguçada rasga um barco de borracha e desintegra a sua frágil e vulnerável forma e mostram as suas garras que emergem deste solo rico, por vezes árido e infértil, da planície alentejana. Caminho mais um pouco, parando ao som do ranger das rodas de um carro de mula sobre a calçada de paralelos. O seu condutor, um velho, em cujo rosto estão marcadas as mágoas e as saudades de um passado longínquo que os seus olhos querem ver projectados no futuro, mas não alcançam. As suas mãos agrestes, representam o saber de quem tem uma grande experiência de vida. Conhecem como ninguém a dureza da enchada que talha a terra. Têm a lembrança de um sol abrasador que se revela no Verão, escaldante, na solidão dos campos de trigo, nas vinhas e nas costas de todos os que as trabalham.Sem mais pensar em nada, afigura-se-me na mente a vinha onde trabalhei no Verão passado! Aí tive o contacto mais directo com as pessoas da vila, o trato de igual para igual, o verdadeiro companheirismo… Com aqueles que trabalham no campo, que coabitam na sua simplicidade a vida, no infortúnio de uma alegria que é viver a cada momento que se morre, mas sem que disso se apercebam, ou melhor, finjam não aperceber-se. E fazia muito calor! A sua boca gritava o verdadeiro sentido da palavra simplicidade, quando as gargantas secas, requeriam água que lhes matasse a sede. À hora de almoço, reuniamo-nos debaixo de um chaparro que havia no alto de uma colina, de onde se avistava a vila, resplandescente de calma. A estrada de alcatrão rasgava as searas douradas. Os montes, pequenas colinas, davam relevo ao traço distante do horizonte que o Criador manchava de laranja e vermelho e um sem fim de amarelos, no final de cada tarde… E havia também tons de azul e pássaros a voar em bandos, pássaros com asas soltas ao sabor do vento Suão, navegando sem rumo. Eu, lembro-me, em pé, maravilhava-me com o sentimento que me proporcionava o pôr-do-sol. Sabia que anunciava a noite, mas era nesse momento que tinha a certeza de um novo dia, mesmo que eu já não o habitasse.As badaladas do sino da torre da vila propagam-se pelo infinito, atordoam-me os sentidos, sinto-as finalmente acariciarem-me os tímpanos. É este som etéreo que me faz regressar ao presente. Diambulo entre sussurros que flúem nas travessas das ruas, nas encruzilhadas de caminhos, onde casinhas, completas sinfonias de branco caiadas convivem harmoniosamente com casarões antigos, cúmplices de segredos seculares, tal como a mais sincera das amizades. Recordações, hábitos e tradições, as nossas raízes, que nos fazem esquecer a proximidade ao terceiro milénio.O último passo de uma escada faz-me sentir o aroma da terra batida, molhada, que se mistura com o cheiro das castanhas que estalam no fogo incandescente de uma fogueira. Continuo a andar vagarosamente, olhando o meu entorno e detenho-me, por alguns segundos, frente a um lago onde algumas folhas flutuam. Vejo a minha imagem reflectida na água, enquanto o vento, incita as folhas secas, inertes, caídas no chão, a brincar. Elas correm com o vento. É como se voltassem a estar animadas… Pisar a terra provoca-me uma satisfação que me invade o pensamento e o espírito. A beleza deste quadro vivo faz-me pensar na minha existência. Ver conjugados os quatro elementos da Natureza, transporta-me para a imensidão do quinto elemento, a existência, a condição da vida e de ser humano. O que sou, o que faço no mundo, o porquê de tudo, até de morrer. Sim! Porque me intriga o nada ser depois da morte, de acabar o ser vigoroso que eu sou, o não pertencer a este mundo, o não obedecer à dinâmica da vida. Até este simples banco de jardim, isolado, onde me sento e reflicto, existe. Pertence à minha realidade, tal como a pinto, apesar de ser desprovido do essencial: a vida, os sentimentos, os desejos…Eu sou parte integrante deste cenário deslumbrante, cuja criação me transcende, já que a minha existência elementar é dominada pela Natureza, que ao mesmo tempo, a mim se subordina. Conheço essa Natureza como ao meu suspiro perante a noite, como ao choro do luar de Agosto e à melancolia tardia das noites de Maio. Porque à noite, é inevitável mergulhar no indecifrável azul do céu e enxugar as lágrimas prateadas da Lua. Estas iluminam a nossa existência e permitem reconhecer as nuvens, que se assemelham a perfis, silhuetas, irreconhecíveis, que se esvaem no meu pensamento… É o deslumbramento da alma perante a grandiosidade do Universo, de uma acção, de uma simples acção… O algo que fazemos habita o ínfimo do espírito para toda a eternidade do nosso ser. Mesmo que não estejamos presentes.Um gesto brusco descobre uma majestosa noite, elevada pelo charme de uma luz forte, que a circunda, sob uma abóbada de pequenos pontos que teimo em observar. Lá fora as cegarregas cantam sem cessar. De novo a aura da Lua! Sinto-me cheio, pleno de vida e revoltado com a efemeridade daquele momento, daquela sensação ser única. O meu grito forma-se nas entranhas de um corpo palpável em que vive a liberdade de um ser maior perante mim, e ao mesmo tempo, de um ser mínimo, diante dos sentimentos. Grito! Grito porque quero e posso e porque sei que a existência da felicidade não se traduz por uma palavra, mas sim pela incapacidade de a conhecer integralmente e a impossibilidade de a saber explicar aos outros.A noite traduz-se numa alvorada que ouço, ainda que longe, mas ouço-a. No relógio pendurado na parede, as horas passam lentamente. Esse sentimento de lentidão é recíproco na minha alma e na minha cabeça. Acendo um cigarro e caminho para a luz, encosto-me à ombreira de uma porta aberta sobre a planície. Está fresco o ar! Abro a porta às minhas recordações, sim… às memórias que o tempo deixou retidas no meu pensamento.A infindável noite que se abate e atravessa a própria reversibilidade da cor do céu e da linha horizontal que serve de ponto de partida para todas as viagens da minha mente. Leva-a. Leva-a, mas não a deixes voltar a este mundo real e à capacidade de ser uma potencial vítima desse tão falado rigor, que não existe. Não me devolvas à realidade que em nada é sonho. Ou será que é uma real utopia? Uma visão fantástica da realidade e da felicidade ou um delírio numa noite de febre, em que o rubor do termómetro acelera o ritmo quente da imaginação humana. Essa imaginação, minha e nossa, mas muito própria de cada um. Mas traz-me de volta. Deixa-me voltar ao mundo dos vivos, porque quem vive na ilusão não pertence ao mundo dos ignorantes e não pode conhecer quem o faça feliz. E como pode haver conhecimento sem que haja ignorância? Eu quero viver na ignorância para poder conhecer a realidade. Porque o irreal só existe porque há real e eu sou uma realidade… Apesar de concreta aos olhos dos outros, sou uma realidade sem definição ou contorno possível de descrever… o nosso ser é indescritível.Cada vez mais, a cor escura do céu se esbate num amarelo resplandescente que cega os olhos mas apura a vida. O despertar da vida, esquecida na vila, mas apenas apaziguada nos campos.E eu fui feliz.